segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Não


Um tiro de calibre trinta e oito.

Seco. Objetivo.

Estampido alto e breve.

- Não!

Um 'não' é forte, preciso e decidido.

Parece não deixar margem para dúvidas.

Três letrinhas escolhidas a dedo.

Um comprimido tarja preta, compacto, de pura negação.

Pense um pouco.

A palavra 'negativo' tem o mesmo significado.

- Vai ao jogo?
- Negativo.
.
Mas dizer 'negativo' é muito mais suave do que dizer 'não'.

No negativo, os ingredientes da recusa estão uniformemente diluídos nas letras.

Uma consoante, uma vogal, uma consoante, uma vogal... equilíbrio total.

É como tomar novalgina misturada na água.
Só se sente o sabor amargo bem de leve.

O não é diferente.

É um sossega leão de efeito imediato.

Se não for engolido com água, pode ser injetado na veia ou até invadir feito supositório.

Êne, a, ó, til.

O 'til' faz toda a diferença. Talvez seja a substância mais forte, o princípio ativo mais poderoso do medicamento.

O til se pronuncia com voz anasalada.

Nenhum som passa pela caixa sonora do nariz discretamente.

Pra se dizer 'não', tem que fazer força.

-Não!

A letra 'n' e o til vibram no aparelho vocálico.

Faz tremer o corpo, faz mexer as moléculas de som, explode no tímpano do ouvinte.

É como sentir no peito o eco de uma caverna após um grito.

Assusta os morcegos e desperta as feras adormecidas.

-Não!

Pois veja o 'sim'.

Muito mais amigável, mais agradável.

O 'sim' desliza boca afora. É uma palavra escorregadia.

O 'S' se encarrega disso. Por isso é tão fácil dizê-lo.

Já o 'não' não. Só se diz com uma boa razão.
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Epílogo

A espécie humana, cada geração a seu tempo, se julga capaz de estabelecer a verdade sobre todas as coisas.

Mas é também da condição humana viver, evoluir, para descobrir que todas as verdades de 100 anos atrás eram, na verdade, uma grande mentira.

O 'não', tão temido e malvado apresentado no texto acima, nada mais é do que uma grande falácia.

Ele não é tão decidido e obtuso quanto parece.

Se aparentemente ele não deixa incertezas, conhecendo-o um pouco mais descobre-se que é um poço de contradição.

Veja o exemplo.

Se pergunto:

- Quer ir ao cinema hoje?
- Sim.

(Não dúvidas quanto à resposta. A pessoa aceitou o convite)

Mas se pergunto:

- Você não quer ir ao cinema hoje?
- Não.

E aí? A resposta 'não' é para dizer sim ou não?
É para concordar com a pergunta e dizer "eu não quero ir ao cinema"?

Ou é pra negar a pergunta e responder, na verdade "Não! Eu quero sim!"
Na verdade, o 'não' é um grande escravo da vírgula.

Por causa dela, as duas respostas seriam totalmente diferentes.
- Não quero!
- Não, quero!

Quem diria.
O não, afinal de contas, não é tão durão assim...

Ou não?

Um comentário:

Rach disse...

eu acho que o não é escravo da vírgula, pq, na verdade, esperamos muito isso dele. só ele, sozinho, nos deixa uma dúvida mto da incômoda, isso sim!