quarta-feira, 8 de abril de 2009

Conto inspirado em fatos reais

"Canhoto gosta do mouse do lado esquerdo! É tão difícil entender isso???"

Um grito sem voz nascia das entranhas de Carlos e morria na garganta, bem antes de se propagar. Claro, não pegaria nada bem sair berrando no ambiente de trabalho. Mas que dava vontade, dava!

Toda vez que o jornalista chegava para trabalhar, encontrava o mouse do lado direito. Dava início, então, a um ritual diário, que já durava uns dois meses.

Puxava a cadeira com rodinhas na sua direção, sentava-se confortavelmente. Passava o mousepad para o lado esquerdo e trazia o mouse na sequência. Puxava o monitor do computador para frente e colocava o bonequinho que enfeitava a escrivaninha um pouco atrás da tela do PC. A ordem daquelas etapas nunca era quebrada, como se existisse um manual passo-a-passo.

A primeira vez que realizou a sequência de movimentos, não deu a devida importância. Mexeu na configuração da mesa com a inocência de uma criança que brinca na areia. Mas não demorou muito para a sucessão de gestos ganhar contornos de uma guerra silenciosa.

Naquele mesmo computador trabalhava outra pessoa, mas no turno da noite. A cada manhã, Carlos percebia que a disposição dos objetos tinha sido modificada. Sempre à mesma maneira: mouse do lado direito, mousepad idem. O monitor do PC um pouco mais pra trás e o bonequinho colocado, cuidadosamente, à frente da tela, bem perto do usuário.

Ele não deixava barato. As preliminares do trabalho, religiosamente, seguiam aquela liturgia: toda manhã, antes de qualquer ação, os objetos dançavam conforme seu próprio gosto.

O jogo se prolongou durante muito tempo. Como um tabuleiro de xadrez que só tem duas casas. Um jogador arrastava a peça pra lá, o outro a trazia pra cá.

Depois de alguns meses, não era mais possível desisitir. Se abrisse mão de um de seus movimentos, seria interpretado como um fracassado pelo funcionário da noite. Ele não estava disposto a isso. Não queria dar a entender que não era senhor daquele espaço. Pagava pra ver a hora em que o rival da noite iria desistir.

Carlos conjecturava. Quem seria o competidor? Seu palpite era de que tratava-se de uma mulher. Aquele bonequinho, imaginava ele, pertencia a um dos filhos pequenos dela. Na lata de lixo que amanhecia aos pés da cadeira, sempre havia lenços de papel dobrados e embalagens de chiclete. Homem não dobra lenço, homem amassa! E esse chiclete aí de melancia tem a maior cara de ser coisa de menina. Mas que tormento! Tudo não passava de especulação.

Um dia, ficou trabalhando até mais tarde. Mas não tarde o suficiente para encontrar-se com a adversária, pensou ele. A cada minuto, na verdade, Carlos ficava angustiado. Queria acabar logo e ir embora. Por algum motivo, não queria descobrir a identidade secreta da rival. Tímido, não suportaria o constrangimento. - Mas que besteira!, imaginava, para se convencer de que estava transformando aquilo num bicho de sete cabeças.

Por via das dúvidas, desligou o computador sem acabar de fazer o que tinha que fazer. Levantou rapidamente e foi saindo da redação. Cruzou com uma mulher de uns 30 anos, morena e magra. Nunca a tinha visto antes. Será que era ela? Cumprimentou-a com educação e continuou andando. Não olhou para trás.

Uma manhã, percebeu algo estranhíssimo conforme se aproximava do computador. O mouse continuava do lado esquerdo! O que teria acontecido? Seria a rendição confessa de sua inimiga? Naquele dia, foi até difícil abrir os trabalhos. Não havia o que arrumar na mesa. Era como se algo estivesse fora do lugar, como se tivesse sumido parte importante da sua rotina.

Dia após dia, o mouse continuou dormindo do lado esquerdo. Mas na sexta-feira da segunda semana, Carlos se tranquilizou. - É lógico! Ela entrou de férias!!!

Ufa. Um alívio! Contou mais 15 dias e pronto. Lá estava o mouse do lado direito novamente. O desafio havia recomeçado.

Cinco semanas depois, Carlos recebeu a melhor notícia da sua vida profissional. Seria promovido! Virou chefe! Não mais trabalharia ali!
Almoço com os amigos, tapinhas nas costas, champagne, jantar caro com a esposa, muita comemoração. E o melhor. Teria uma sala e um computador só para ele!
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Antes de deixar aquela escrivaninha pela última vez, desligou o monitor devagar. Esperou calmamente até que o computador apagasse. Afastou a cadeira para trás, levantou-se. Deu uma leve ajeitada no mouse que já estava à esquerda, seu lado favorito.
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Botou a mochila nas costas e hesitou um pouco antes de sair. Sabia que, após o movimento noturno, nunca mais teria direito à réplica. Baixou a cabeça e admitiu, baixinho:

- Xeque-mate! Você venceu.

6 comentários:

Bibi disse...

Seu blog é sensacional! Estou encantada! Voltarei sempre!

Afonso disse...

É pica esse Carlos!!!

André B. disse...

Obrigado, Bibi!

Afonso, esse Carlos, na verdade, é o maior bundão!!!

Cristiano disse...

Maravilha de mini-conto, Drei. Que tal fazer disso seu ganha-pão? Largar esse ramerrão diário da redação, onde mouses nunca ficam onde os deixamos no dia anterior, e virar escritor famoso? Senti um quê de Veríssimo nesse texto. Espero os próximos!

André B. disse...

Valeu Catito!!!

Mas entre um Vero e um Veríssimo, há um longuíssimo caminho!

De qualquer forma, obrigado pelo elogio!! Que bom que você curtiu!

Mas conheço um conto imbatível, escrito há uns 10 anos. De um país que quase entrou em guerra por causa de um objeto estranho no radar. No fim, era apenas uma sujeirinha no painel. Sujeira que quase iniciou um conflito armado!

Abração

Ísis disse...

Adorei o conto!
Queria saber quem era o adversário... rs