segunda-feira, 20 de abril de 2009

Mané

Quando criança me lembro da delícia de driblar.

Era bem mais fácil. O corpo, leve, permitia. Era divertido dançar sobre a bola. A brincadeira no andar térreo do prédio era tão gostosa quanto viver a própria vida.

Na Copa de 94, descer para jogar futebol ao fim de cada jogo da seleção era complemento obrigatório. Como um teatro em dois atos, não existia um sem o outro. Não dá pra dizer se era mais prazeroso ver o Brasil jogar ou chutar bola logo depois.

Chutar a bola e prendê-la. Deslizar com a posse dela. Correr com ela colada aos pés. E não passar pra ninguém.

Cresci. E descobri.

No mundo dos adultos, não é assim.

Quando um jogador faz muita firula, é xingado. A torcida perde a paciência. Se irrita.

Mas no fundo, eu sei, é recalque.

Todos reconhecem o talento do ídolo, mas o crucificam exatamente por saborear a própria habilidade e não prestar tanta atenção à equipe.

No fundo, todos queriam ser livres para driblar. Driblar no campo e driblar na vida. Driblar sem ter que fazer gol. Driblar as atividades, os horários chatos, os deveres, o trabalho.

Todos gostariam de ter todo o tempo que a diversão merece, sem ter que submetê-lo aos mandamentos da vida diária.

Poder levar todo o tempo do mundo despertando de manhã (ou não tão de manhã assim). Escovar os dentes devagar, ler o jornal ou ligar o rádio.

Beber água da geladeira no gargalo. Ficar de bobeira o quanto for necessário, pela simples razão de poder existir, por alguns instantes, sem obrigações. Poder chutar os horários para escanteio.

Todo mundo, no fundo, queria driblar como Garrincha.

Hoje em dia, na pelada dos sábados, os berros são para que se chute mais a gol. Para que se passe mais a bola para o companheiro.

Ninguém pede para o cara dar um drible a mais. Para pedalar mais, firular. Para embaralhar as pernas com a bola parada. Ninguém.

Estamos acostumados demais a cobrar eficiência, a termos metas e objetivos cobrados de nós. Ninguém, nem chefes nem governo, nos exige, : - Seja feliz. Fique despreocupado. Viva sem estresse. Vá curtir seu tempo de vida!

Quando era criança, assiti ao filme "Garrincha, a alegria do Povo" e fiquei inspirado. Desci para a quadrinha e tentei imitar. Deus tivesse tido bondade infinita de me conceder um décimo do talento do Mané...

Só por míseros minutos, para que eu pudesse me divertir, livre, como nunca consegui.

Mané não pertencia a este mundo. Tinha a mente tosca, precária, primária. Tinha o ritmo de vida da roça, tinha a pureza dos interioranos. Tinha a escolaridade do brasileiro médio. E não tinha pretensão nenhuma de render todo esse tesouro para a neura da cidade grande.

Jogou três copas do mundo como se estivesse descalço nos campinhos de terra de Pau Grande, sua cidade natal. Driblou zagueiros suecos e se divertiu como se estivesse entre amigos.

Tinha traços pesados, rosto de índio. Seus antepassados eram nativos da floresta, acostumados a escapar do homem branco. A tribo de seus avós foi uma das que resistiram por mais tempo. Eram exímios dribladores.

O sorriso inocente nunca largou-lhe os lábios. Parecia bobo, tonto. E era visto assim mesmo. Como um ser incapaz de compreender a seriedade do mundo civilizado.

Feliz era Garrincha. Bobos somos nós, que não nos permitimos a liberdade de fintar, de flanar sem preocupação pela vida.
Quais são nossos objetos de desejo? Que coisas sem importância nos fazem felizes?

Será que sabemos? Ou já foram, há muito, sufocados pelo cotidiano?

Mané conhecia a sua fonte de alegria: a bola. E a conduzia para todos os lugares. Não deixava ninguém tomá-la de seu controle.

Não por acaso, os devotos do pragmatismo, como nós e todos os defensores fintados por ele, ficavam com cara de pateta quando ele desfilava. Aquele ponta-direita desmascarava nossas certezas burocráticas. Mostrava que não valiam nada.
O que vale mesmo é dançar.

O camisa sete tinha um ar infantil. O mesmo ar infantil que eu tinha, aos 12 anos, quando a bola e o campinho de futebol eram a realização de todos os meus anseios em vida.

Criança não se preocupa com objetivos. Criança não vê horizonte. Criança só pensa no hoje e a vida parece uma eternidade.

Adulto é que se preocupa. Adulto pensa na morte. Pensa no fim. E, por isso, perde tanto tempo com prazos, metas e cobranças. São muitos os afazeres a serem cumpridos antes de o fim chegar.

Adulto não dribla. Adulto só sabe chutar no gol.

Garrincha teve, sim, um fim trágico. Vítima de excessos que, quem sabe, não atropelariam outros mais sagazes, mais escaldados nessa vida realista e utilitária. Mas soube viver seus momentos de bola na plenitude. Soube fazê-los valer por eternidades instantâneas.

Para ele, a vida era um campo de futebol sem trave. Sem rede. Era só um grande espaço para bailar, fintar e se divertir.
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Ó Pai, como eu queria brincar como Mané.
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Finalmente, estou lendo o livro "Estrela Solitária", de Ruy Castro, lançado há mais de uma década.

Um livro que não parece livro. É grosso mas não pesa. Tem muitas folhas, mas como se as páginas não tivessem números. Faz o tempo voar. Recomendo a todos os amigos.

E quem quiser aprender a viver como Garrincha, a primeira aula é grátis:

8 comentários:

HBO disse...

Achei um desaforo ninguem fazer comentários desse post. Então resolvi fazê-lo.
Em primeiro lugar: ai que saudades da época que vc ia pra baixo dar de Mané.
Em segundo: que maravilha o que vc escreveu.
Em terceiro: eu já disse que te amo??? Beijos

André B. disse...

Que Tieta fofinha que você é!!!
bem bochechuda!
Que bom que voce gostou!!!

Eu também te amo!!!

beijo!!!

MClara disse...

Top 10...muito lindo!
E também amo ele, Tieta......
heheheh

valmir disse...

É uma vergonha, mas ainda não li essa biografia. Vergonha pq sou botafoguense. E pq a tenho há tempos na prateleira e sempre deixo pra outro dia.
Não vi Garrincha jogar, mas sei o quanto foi audacioso com suas pernas tão tortas quanto abençoadas.
Acho que a torcida xinga quando um jogador faz muita firula, porque não suporta sentir a pauta brusca do movimento, da ação. Prender a bola é prender o jogo. É como entrar um comercial no clímax do filme. O que Robinho faz com suas pedaladas é firula, só que em movimento. É um comercial no meio do clímax, mas sem interromper o filme.
O drible é só pros atacantes, diz um amigo. E Garrincha, na pureza de sua história de vida, jamais podia ter chegado ao ataque. Pensavam os que o criticavam.

Fernando Burgés disse...

Caraca dézão, esse post ficou top 1 pra mim. Tá absolutamente genial!
beijo!

Tio Zé. disse...

André,

Você sabe como eu, irreverente que sou, sempre fui vidrado no Mané e suas irreverências.
Li o livro do Rui Castro em sua casa de uma penada só.
Lembra?
Parabéns!!
A crônica está maravilhosa.
Viva aos irreverentes e anarquistas,tal como o Mané.

André B. disse...

Valeu, Tourão!!! Que bom que você curtiu!

Tio Zé, me lembro bem de você lendo esse livro.

Lembro que você achou graça dos nomes dos melhores amigos do Garrincha: Pincel e Swing.

jose luis disse...

Garrincha em final de carreira
jogava no Olaria
iam de onibus para um amistoso em Vassouras
a estrela era ele
no meio da viagem de repente Garrincha gritou
-para, motorista
o onibus parou e Garrincha desceu
voltou logo depois com um gamba' vivo nas maos
ninguem queria deixar ele levar o bicho no onibus
-entao nao vou
depois de muita negociacao
colocaram o bicho a bagageiro
chegando em Vassouras
Garrincha pegou o bicho, matou, assou e comeu
meu socio estava la'
era o medico do time