terça-feira, 28 de abril de 2009

Quando ajudei Maria Lenk a calçar as sandálias

- André, hoje você vai lá buscar a Maria Lenk!

Funcionário recém-admitido não recusa tarefas. Na maioria das vezes, nem quer rejeitá-las. O que não quer dizer que não esteja nervoso com a empreitada.

A missão não era das mais difíceis. Buscar a Maria Lenk na casa dela, no Leblon, para fazer uma entrevista.

Maria Lenk já estava muito velhinha naquele ano, em 2004, embora tivesse saúde de aço. Aos 89 anos de idade, continuava nadando, no mínimo, 1500 metros todos os dias.

Nadando como quando era criança, no Rio Tietê, ainda limpo. Ou em 1932, em Los Angeles, quando se tornou a primeira mulher da América do Sul a competir em Olimpíadas.

Nadando como em 1936, nos Jogos de Berlim, que Hitler usou para provar ao mundo a superioridade da raça alemã... (mas o ditador se esqueceu de combinar com um certo negro americano chamado Jesse Owens; Atleta voador que colocou os branquelos no devido lugar).

Naquela edição das Olimpíadas, Lenk e a delegação brasileira viajaram para a Alemanha de navio. Na embarcação, havia um tanque de água com uma engenhoca que produzia marolas artificiais. Os atletas, Maria Lenk inclusive, davam braçadas contra as ondas para treinar e não perder a forma física.

Um lindo símbolo: nadavam sem sair do lugar, provando que a delícia de nadar está no ato em si, e não na ambição de se chegar a algum local.

No carro com motorista, fiquei sabendo, pelo celular, que as regras do meu compromisso eram um pouco diferentes do que eu imaginava:

Maria Lenk estava sozinha em casa.
Morava no terceiro andar.
E um detalhe importantíssimo: o prédio não tinha elevador.
As instruções eram claras. Eu deveria subir, pegá-la pelo braço, e ajudá-la a descer as escadas.

- Oi, tudo bem? Eu sou o André, vim buscar a Maria Lenk. Posso subir?

- Pode sim, disse o porteiro.

Passo a passo escada acima, lá estava eu em frente à porta dela.

Vi primeiro os olhos esverdeados. Abriu sorrindo, me deixando bem confortável.

- Pode entrar, meu filho. Ainda não acabei de me arrumar. Me espera aqui na sala.

Fui seguindo o corredor que levava aos sofás. Havia várias fotos nas paredes, retratos dela em várias idades, sempre de maiô ou sendo homenageada numa solenidade. Acho que tinham medalhinhas também, não me lembro bem.

O tempo todo, estava preocupada comigo: - Calma aí, não vou demorar nada. Vou só trocar essa roupa de ficar em casa por um vestido. Fica à vontade.

Eu estava bem à vontade. Mas não parava de imaginar como era, para uma mulher da idade dela, viver num prédio sem elevadores. Tudo bem, ela era atleta. Provavelmente tinha mais vitalidade do que eu, que levava vida de sedentário. Mas não era mole subir aquelas escadas todos os dias. E o risco de cair? Toda pessoa, ainda mais idosa, corre esse perigo.

Maria Lenk voltou arrumada. Mas tinha um probleminha.

- Meu filho, será que você pode me ajudar a abotoar essas sandálias? Eu não consigo, não alcanço, pra mim é difícil.

A docura da voz dela era uma porta de entrada enganosa para a escuridão de uma árdua tarefa.

Eu estava muito nervoso. Não levo o menor jeito para isso.

Não tenho coordenação motora para cuidar de gente. Não sei fazer massagem, tenho medo de segurar bebês de colo, fico em pânico de de ajudar a fechar o vestido da minha namorada.

Naquele momento, o desafio era forçar duas extremidades de couro de uma sandália a se encontrarem atrás do calcanhar de uma senhora de idade, e, por isso, com pele e ossos frágeis. E o pior: caso eu tivesse sucesso com o primeiro pé, ainda haveria um problema gêmeo à minha espera. Falta de confiança total!

-Está machucando?

- Não, filho. Pode apertar.

- Tem certeza? Tô tentando. Ai... não tô conseguindo! Acho que não fecha não.

- Fecha sim, filho. Pode fazer que não tá doendo não. Eu tentaria, mas realmente não consigo. Sempre meus filhos me ajudam, mas eles saíram.

- Então vamos lá! Argh... agora vai!

E foi. Um depois o outro. Parecia um obstáculo intransponível. Mas consegui abotoar as duas sandálias, com muito custo. Fiz tanta força que tive medo de tê-la ferido. Será que é preciso fazer tanta força mesmo? - me perguntei.

- Vamos?

- Vamos.

Saímos do apartamento e começamos a descer as escadas. Ali, me lembrei que havia a segunda parte da jornada. Maria Lenk se apoiou no meu ombro direito e fomos descendo pé ante pé, bem devagar.

Além de não ter habilidades de tato paternais, como descrevi antes, sempre fui tão estabanado que temi por aquela descida dos lances de escada, que não terminavam nunca.

Se houvesse como fazer cálculos matemáticos para esse tipo de coisa, constataríamos que a meiguice e a tranquilidade dela eram duas vezes maiores que minha insegurança e ansiedade. E olha que eu estava bastante aflito.

O destino quis que minhas duas tarefas fossem cumpridas sem traumas e com sucesso. A entrevista de Maria Lenk foi linda. Um privilégio ter tido a oportunidade de dividir aquele dia com ela, passando apuros domésticos e ouvindo suas histórias.

Na volta pra casa, precisei apenas colocá-la dentro do carro, agradecer e acenar. Havia alguém esperando por ela no prédio para ajudar no caminho de volta.

Ela foi se afastando e eu guardei comigo essa história até hoje. E, acredito, para sempre. Foi a primeira e última vez que a vi.

Maria Lenk, ousada, desbravadora! Paulistana que ousou nadar na época em que nenhum marido queria esposa atleta. Acreditava-se que esportistas não poderiam engravidar.

A maior nadadora da história do Brasil morreu no dia 16 de abril de 2007, com 92 anos.

Coincidentemente, no período entre nosso encontro e a data em que faleceu, entrei na natação, treinei muito e consegui realizar o que nunca imaginei: atravessar o mar de Copacabana a nado duas vezes. 4 quilômetros, mais de uma hora de braçadas.

Pra mim, um grande feito. Para Maria, provavelmente, algo que faria com a candura e a calma de um sorriso.

Tantos anos de uma bela vida lhe ensinaram a não temer as situações mais simples, nem as mais difíceis. Tinha a mesma serenidade para cruzar mares revoltos e para abotoar sandálias.

Eu ainda tinha muito o que aprender.

11 comentários:

TATIANA SÁ disse...

Lindo!!!
amei a história. Era mesmo fabulosa a Maria.
Parabens por conseguir abotoar as sandálias!

Cristiano disse...

Genial, Drei. E nego ainda paga uma fortuna pra renatos maurícios prados e armandos nogueiras da vida... Maravilhoso o texto! Cheio de sensibilidade e poesia. Uma das suas melhores crônicas até o momento.

Bibi disse...

Que história mais liiiiinda! Todos os elementos que fazem fofa estão presentes no texto: inclusive a serenidade ela e a sua falta de tranquilidade. Desafios da vida que a gente nem imagina ter que passar| Muito legal! Ela era linda e continua desbravadora!

Anônimo disse...

Beleza, texto muito bom, me imaginei eu abotoando as sandálias com as mesmas ansiedades, medo, e falta de confiança, excelente. Abraço e sucesso.

valmir disse...

Nunca fui a um asilo (serve retiro dos artistas?). Mas estamos sempre rodeados de pessoas de mais idade. Numa sociedade que privilegia o ‘novo’, o belo como sendo o jovem, o modelo de vida que temos nos faz descartar pessoas com o passar do tempo, pela quantidade de cabelo branco que apresentam. Mas voltando ao post...
Eu sou viciado em ‘O Aprendiz’, aquele programa do Roberto Justus (pode zoar... hehehe). A última prova a que os participantes foram submetidos era pra reformar um asilo. Cada grupo ficou com um asilo. Não bastava apenas sair pintando as paredes. Era preciso fazer tudo sem mudar muito a rotina dos velhinhos. Fiquei pensando em como eu faria aquela prova. Sou do time dos destrambelhados, não sei se agiria da melhor maneira.

MClara disse...

eu e o andré também somos viciados no aprendiz!!!!!!!! E eu chorei com a prova do asilo!
bjsssss

amor, linda sua historia, emocinante...

HBO disse...

Dé, que belíssima história.Que sensibilidade e delicadeza nas palavras e nos gestos. Conhecendo como te conheço,imagino como foi delicada esta missão, mas como foi bem executada.
Fico pensando cada vez que leio seus post, quando vc vai montar um livro de crônicas. Espero que não demore. Vou ser a primeira da fila na noite de autógrafos. Bj

André B. disse...

oi Tiéta,

pra fazer um livro de crônicas, tenho que comer muito arroz com feijão ainda!!

Beijão pra você, bochechuda

HBO disse...

Discordo!!! A gentxi precisa aproveitar as oportunidades. Vc tem muito material para ser organizado em um livro e são muito boas suas cronicas.
Sabe aquela história que se vc deixar de pegar o trem naquela estação , já era... Pois bem...Não perde o trem.Vc tem um super potencial e deve ser aproveitado IMEDIATAMENTE. BJ

Fernanda Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fernanda Mendes disse...

Boa noite!
Meu nome é Fernanda Mendes, sou professora da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ e estou defendendo a tese de doutorado, cujo tema é sobre a professora Maria Lenk. Li sua crônica das Sandálias e achei simplesmente sensacional, vou citar alguns trechos na tese porém preciso do seu nome completo, para a referência bibliográfica. André B. não é suficiente.
Obrigada.