O trânsito tava brabo. Chovia. Eu ouvindo a canção que já tinha escutado incontáveis vezes. De repente, a ficha começou a cair. Devagar, sem esforço. "Caramba, será que ele está falando disso mesmo?"
Aos poucos, uma estrofe se juntou à seguinte, fazendo sentido, com significado amarradinho, como uma espinha dorsal. Sim, porque várias músicas começam versando sobre um assunto (amor, por exemplo) e logo perdem a lógica, perdem o nexo. Há músicas que se levam mais pela melodia e não tanto pela letra.
Pois esta não. Esta é inteira, tem início, meio e fim. E fala de algo que, poucas vezes, ouvi como tema de música. A letra é a seguinte:
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So Damn Lucky - Dave Matthews
Tudo ficou diferente
minha cabeça nas nuvens.
Bati no meio-fio
meu pé no acelerador
comecei a deslizar
perdi o controle
tudo está diferente
num piscar de olhos
Oh, meu Deus
espere e veja
O que acontecerá comigo agora
Coração congelado
rodas gritando
será que o grito vem de mim?
Sou muito sortudo!
Por você ter insistido e dito
"Te vejo mais tarde"
Eu te escutei
mas, alguns minutos depois,
estou deslizando
tudo está diferente de novo!
Me peguei pensando agora
que você fez tudo o que podia quando disse
"Amor, pega leve, vá devagar"
"Ok", foi minha resposta.
Oh, meu Deus
espere e veja
O que acontecerá comigo agora
Coração congelado
rodas gritando
será que o grito vem de mim?
espere e veja
O que acontecerá comigo agora
Coração congelado
rodas gritando
será que o grito vem de mim?
Me leve de volta
para pouco antes de eu estar rodando
me leve de volta
para pouco antes de eu estar tonto
me leve de volta
é incrível o que pode acontecer em um minuto.
Rodando, rodando, rodando...
É incrível o que pode acontecer em um minuto.
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É isso mesmo. A letra versa sobre um acidente de trânsito. Simples assim.
No refrão, Matthews congela aquele instante logo após o carro ter batido. Um momento de pânico. Quando acontece um imprevisto, é como se nossa consciência aflorasse com tal potência que parasse o tempo e tomasse ciência, por centésimos de segundo, do que está prestes a ocorrer.
Frações de segundo, mas dá tempo de ter medo, de se arrepender, de se perguntar "por que eu estava tão depressa?"
A letra, do início ao fim, parece uma "confusão mental" de tempo, a mesma que apresenta um doente que acaba de acordar de um desmaio pós-acidente. Como um fluxo de pensamentos.
Não segue uma ordem cronológica. Narra o evento do carro capotando, congela o instante em que está prestes a se espatifar, volta para o momento pré-acidente, conclui que é muito sortudo por ter sobrevivido, retorna para o segundo em que estava saindo de casa, quando sua mulher o alertou para pegar leve...
É uma letra existencial. Já deve ter ocorrido essa sensação a todos.
Como um minuto pode mudar uma vida inteira.
Como, se pudéssemos voltar no tempo, salvaríamos alguém que amamos de algo ruim.
Como passado e futuro se interligam por palavras e pequenos gestos que parecem pré-destinados a existir.
O tema é tão óbvio, mas tão sensível. A canção é tão suave, mas tão poderosa.
Uma música sobre vida e morte, sobre amor nas curtas palavras, sobre lembrar de quem se ama. Sobre pôr tudo a perder num piscar de olhos.
Não há alegoria melhor para isso do que um carro.
Considerado por muitos a extensão do homem, símbolo fálico de poder.
Máquina que dá ao homem a capacidade de se mover com velocidade sobre-humana.
Máquina que dá ao homem a capacidade de se mover com velocidade sobre-humana.
Mas uma cápsula que ilude, e faz perder o controle num instante
A frase-título, 'So Damn Lucky', ou "Sortudo pra cacete!", resume a sensação deste eu-poético que escapou do acidente fatal.
O acaso o salvou.
O acaso o ofereceu a chance de voltar para sua esposa, que poucos minutos antes o tinha alertado: "Vai devagar!"
Muitos não têm essa chance, embora merecessem. A chance de voltar atrás.
E Preste atenção: A melodia tem o ritmo de um carro em movimento na estrada, com aquela levada constante. Quando se viaja dirigindo, sente-se, no volante, a vibração das rodas girando sem fim.
Os amigos do blog me verão muitas vezes falando sobre o sul-africano Dave Matthews. Para mim, um dos maiores poetas da música. Homem das melodias mais simples e mais bonitas.
Quem ficou curioso, é só clicar aí embaixo.
Em versão acústica, Dave Matthews e Tim Reynolds em NY, Radio City Music Hall, em 2007.
So damn lucky.
Enquanto eu dirigia, do nada, me caiu a ficha desta letra.
Sou muito sortudo!
6 comentários:
Tem mais é que falar do DMB mesmo!!! Essa música é muito boa. É incrível a imensa qualidade das composições do Dave. O cara é genial, tem um dom... Mesmo o último disco, o Stand Up, que não achei muito bom, é melhor que 97% das coisas que rolam por aí...
além de sortudo,
um excelente escritor.
:)
Obrigado!
Quando a gente escreve posts que ficam longos assim, fica logo com medo de ninguém querer ler, hehe.
OI Dé, nem conhecia esse cara ,mas achei a música linda. Bom, vindo de sugestão tua né?? AHahahahah. Ô tia coruja ( para a tristeza das duas outras sobrinhas)bj
Cara, simplesmente genial mesmo. DM num outro patamar. E olha que não precisa nem pegar baixo comparando-o com escabrosidades do atual mundo pop. Ele continua sendo um monstro mesmo olhando pras bandas e compositores de respeito de hoje.
Além do que, em se tratando de DV, eu sempre achei que, tão importante quanto suas melodias e suas letras, assisti-lo cantar preenche ainda mais sua música. A expressão facial dele é simplesmente foda!
Eu não acredito em acaso, acredito em Deus mesmo, esta figura fora de moda e careta. Mas é um cara que eu conheço e já me deu uma segunda chance. Esta música é sobre isso. Vc fica tão pequeno quando pensa : "e se...". É a angústia que está lá todos os dias (e que a gente esconde debaixo da nossa vida atribulada) esfregada bem na cara.
ps-pedido da internauta: aproveitando a pegada, escreva sobre a Dancing Nancies - "could I have been someone other than me...".
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