segunda-feira, 20 de julho de 2009

Alzheimer - Uma vida em 15 segundos


Cena: neto e avó sentados no sofá. Maria, a enfermeira da avó, está mostrando as opções de roupa para um casamento que se aproxima.

- O vestido está muito bom! Preto ficou ótimo, chique mesmo!
- Viu Maria? A vó gostou do seu vestido preto! Prova lá o outro pra gente ver!
- Tem outro?
- Tem sim, vó. A Maria tá indo lá provar pra gente ver como é que fica.
...

- Xi, mas essa roupa vinho tá muito bonita! Que chique!
- Também gostei, vó. Tá bem legal mesmo, Maria, prefiro este vinho a aquele preto.
- Que outro? Tem preto?
- Tem sim, vó. A Maria também tem um vestido preto, mas este vinho tá melhor e...
- Ah, então prova lá pra gente ver como fica, Maria!
...

-Ah, mas este vestido preto tá muito chique! Que linda!
- Vó, tá mesmo. Mas Maria, eu prefiro aquele outro vinho. Tá mais elegante e...
- Vestido vinho? Ah, Maria, prova lá pra gente ver como é que fica...

A cena tem um quê de cômica mas, na verdade, é muito triste.

Esta repetição poderia durar séculos. Maria poderia trocar de vestido até o fim dos tempos e minha avó nunca lembraria que já tinha visto as duas roupas. A única forma de fazê-la comparar as peças seria tirar foto das duas e mostrá-las lado a lado. Não sendo assim, é impossível.

A memória dela dura, de forma contínua, no máximo um minuto. Depois disso, pum, branco total.

Conforme a doença piora, outros sintomas a afligem:

Ela acorda durante a noite pedindo socorro, berrando e chorando. Quando a acompanhante acende a luz, ela diz que não reconhece o lugar onde está, clama pelo pai e pela mãe, pede pra ir pra casa. Ela não se dá conta de que já está em casa.

Maria mostra as fotos da família dela, mostra a foto do vovô, mostra as roupas dela. Às vezes ela se acalma. Outras, ela insiste que mora na Tijuca, bairro onde viveu quando era criança.

Só depois de alguns goles de água com açúcar, ela sossega. Não que tenha acreditado na Maria ou se lembrado de tudo. Ninguém sabe. Ela apenas se conforma com a versão apresentada.

Os fragmentos de consciência que lhe sobram dão a ela a noção perfeita de que tem um problema de memória. Como reconhece isso, muitas vezes consente, recua, silencia para não parecer tola aos olhos dos outros.

Mas no caminhar dessa vida que lhe parece cada vez mais escura, há um aspecto interessante:

minha avó não perdeu o senso de humor, a sagacidade para perceber algumas piadas. Quando brinco com ela, quando faço deboche com o fato de ela falar "automóvel" em vez de "carro", ela compreende perfeitamente e dá uma gargalhada gostosa.

Ela sempre foi dócil. Dócil ontem e hoje. Dócil como muitos seres humanos que se lembram de tudo não são.

O que é viver, afinal?

É ter memória?

Será que vale a pena viver sem ela?
Muitos sentem pena. Acham que é muita crueldade uma pessoa perceber que está esvaziando, que está perdendo as recordações mais importantes e a capacidade de interagir.

Eu não concordo.

Acho, sim, que é uma pena. Acho, sim, que é um sofrimento enorme, para ela e para nós.

Mas saibam que, entre uma breve existência e outra, interrompidas por paredões de ausência de memória, minha avó consegue ser feliz.

A cada piada, a cada carinho, ela me diz, efusivamente, "que bom que você veio aqui, meu filho!"

Apesar da cabeça ruim, dá pra perceber a satisfação e a sinceridade da afirmação. Estava nos gestos e no sorriso dela.

Um sentimento forte e real, que durou alguns segundos... 5 minutos depois de eu sair, ela vai se esquecer completamente de que eu fui lá fazer uma visita.

Amigos, humanos, o que somos?

Somos só razão? Só existimos se nosso cérebro está 100%?

Quem disse que o coração não tem memória?

Eu creio, de verdade: mesmo que minha avó não se lembre com a cabeça, o corpo dela sai mais feliz, sua saúde sai mais revigorada após cada visita dos netos.

O corpo, ainda quente do abraço recém-recebido, ainda lembra do carinho que a mente já esqueceu!
O Alzheimer torna as pessoas prisioneiras de frações de segundo. Elas só existem durante aquele espaço de tempo.

Mas cada um desses instantes valem tanto!
Tem gente que passa a vida inteira, totalmente lúcida, sem conquistar a alegria que minha avó sente nos intervalos de consciência!

E aí? O que é viver, afinal?

Antes de responder, leve em conta que nada restará deste grande piscar de olhos que são nossos 80 ou 90 anos de vida...
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Esta é uma redação de amor à minha avó, por quem sempre tive muito carinho, e que sempre teve muito carinho por mim.

Com ela, criança, eu ia jogar pão pros patos do laguinho de Santo André. Na casa dela, eu comia pão com maionese.

Eu brincava com os imãs que ficavam na geladeira dela, que já tinha 50 anos 20 anos atrás. Eu engatinhava no tapete grosso e meio feito de palha, com cheiro forte de casa de vó.

Memórias. Se ela já não as tem, continua sendo responsável por algumas das minhas lembranças mais importantes.

Enquanto ela se esquece de tudo, eu escrevo as recordações mais queridas da nossa vida de neto e avó.

Estas, meu amigo, a partir de agora, lavradas em tinta, não serão apagadas nunca mais.

13 comentários:

valmir disse...

André, que belo texto, que soco no estômago para um final de segunda e apenas começo de semana. E que responsabilidade que vc tem agora, meu caro, ter que dar conta das suas memórias e as da sua avó.

Maria Clara disse...

Uma vez ouvi numa aula uma história muito interessante.

Um médico decidiu fazer uma experiência com uma mulher com Alzheimer (ou alguma doença do tipo).

Toda vez que ela entrava em seu consultório, ele estendia a mão para cumprimentá-la. Era sempre a mesma cena. Ela entrava na sala, e ele estendia a mão para cumprimentá-la. Ela, lógico, retribuia.

Até que um dia ele decidiu prender junto à sua mão um aparelho que dava choque. Não preciso dizer que a paciente urrou de dor.

No dia seguinte, como de costume, a paciente chegou em seu consultório e ele estendeu sua mão. Porém, dessa vez, ela olhou para ele e falou "nao sei... hoje eu não to com vontade de apertar sua mao".

Ou seja, é possível que sua vó nao se lembre de nada. Mas pode ter certeza que ela sente o que você representa.E sinceramente, para mim isso é o que importa. Para mim isso é viver.

Bjs

Anônimo disse...

Nossa, muito emocionante... me lembrou daquela velha piada.

Cena: Consultório medico, neto e neta levam a avó para revisão médica no neurologista, acompanhada pela empregada-enfermeira.

Médico: Então, como é que estamos?

Vó: Muito bem, só a visão que tem piorado um pouco, mas Deus dá aquela ajudinha, né, e dá uma compensada.

Médico: Compensada?

Vó: É, ele compensa sim. Tira uma coisa e bota outra no lugar. Agora toda vez que eu levanto à noite pra ir ao banheiro, ao abrir a porta Ele acende a luz, e toda vez que fecho a porta, Ele apaga.

Médico: Hmmm, entendi (faz algumas anotações no protuário e lança um olhar para os netos). Fora isso alguma outra coisa? Tem escutado vozes, tem sentido alguma outra coisa?

Vó: Não, doutor, fora isso estou ótima, nunca estive melhor. Não sei nem o que estou a fazer aqui toda semana.

Médico: É aquele problema de memoria, lembra?

Vó: Memória?

O medico desiste do diálogo e se volta para o netos e faz alguns comentários:

Médico: Bom, eu vou manter os outros remédios mas vou adicionar este anti-psicótico. Ela está com umas idéias meio delirantes, de que Deus está fazendo coisas pra ela, 25 mg desse remédio aqui deve resolver os sintomas.

A empregada-enfermeira, a única que passava o dia e a noite com a vó, um tanto inquieta, resolve se manifestar.

Empregada-enfermeira: Doutor, acho que Deus é a geladeira, essa semana ela voltou a fazer xixi na cozinha!

Tu-ru-tá…

mmy disse...

puxa filho, chorei à bessa...
que pelo menos ela continue a ter o calor do carinho de vcs...

TATIANA SÁ disse...

Minha avó tbm está com Alzheimer. Mora longe de mim, mas quando falo ao telefone com ela, percebo que guarda lembranças minhas sim.

Parabens pelo texto, e boa sorte.
beijo na sua avó.

Cristiano disse...

Drei, essa é a Iaia? Não sabia que ela estava assim. Texto lindo. Paguei mico aqui no trabalho enchendo os olhos de água. Embora sejam poucas, tenho memórias muito boas da sua avó, uma pessoa muito agradável. Texto lindo, cara. Vou chorar mais um pouquinho...

PS: responda meu comentário no post do código de barras

Unknown disse...

Dé, passei ontem na casa da vovó. ELa estava num dia bom. Pegou a Bíblia e até arriscou falar a ordem dos evangelhos de uma vez só. Depois eu perguntei para ela quem era Salomão. Ela respondeu:"Salomão foi um rei da Biblia. Mas o que ele fez eu não sei". E eu falei que ele foi o homem mais rico da história porque Deus deu a ele sabedoria. E ela retrucou: "Então que ele fique com a sabedoria dele lá...eu quero é dinheiro no bolso"!

Aproveite as suas férias. Bjs

Anônimo disse...

André,
trabalho com sua mãe e ela me mostrou este lindo texto.

Depois que li pude perceber que a emoção que ela sentiu não foi por ler o texto escrito pelo filho, mas sim por ser realmente emocionante.

Me emocionei muito, principalmente por saber que está retratando a vida de sua vozinha.

Parabéns pela linda mensagem, uma história de vida, de amor, de família.
Manuela

André B. disse...

- Querida Manuela,
obrigado pelas palavras e seja bem-vinda ao Blog.

- Amandinha,

muito boa tirada da vovó! É dessa sagacidade que eu falo quando digo que algo ainda permanece no meio do esquecimentos dela!

Minha irmã Amanda, meus amigos, é quem está na linha de frente cuidando da Vovó. Eu sou apenas ajudante!

- Maria Clara,

é isso a que me refiro quando digo acreditar na memória do coração, a memória do corpo. Nem o cérebro mais comprometido é capaz de esquecer crueldades ou gestos de amor.

- Valmir,

valeu pela força de sempre!

- Tatiana,

boa sorte a você e à sua avó também!

- Mãe,

beijão!! e pára de chorar, heheh!

- Cristiano,

essa, na verdade, é a Vó Lylian. A Yaya está mais lúcida que todos nós, amigo!

beijos a todos

HBO disse...

Querido sobrinho,
Como boa irmã da sua mãe , chorei também. Por tudo de lindo que vc escreveu dessa mulher que foi muito cara pra mim tb. Foi ela que me estimulou a fazer psicologia, e sou feliz por isso. Ela, que me impressionava pelo seu charme, pela sua cultura. Ela que dizia uma frase sábia, "netos são para os avós estragarem e os pais que deêm educação". Isto é, ela fazia tudo de bom e gostoso para os netos. Tudo que os netos querem. Como é cruel essa doença. É como se um grande bicho começasse a comer seu cerebro, deixando um grande oco .
Vc sabe que estamos enfrentando isso tbem de perto, só que dele, a gente não consegue nem esse afeto que sua avó tem. A vida dele o castigou muito. Mas a gente consegue algumas boas risadas, como por ex. ele dizer para Vó Maria que se ela quiser pode ficar na casa dele que ele vai respeitá-la. É isso aí. Lindo. E para minha querida Tata, sei como ela está segurando essa situação e admiro-a muitissimo.um grande beijo para esses lindos netos que sua avó adorava com toda a sinceridade.

Remi disse...

Só pra dizer: o começo do Alzheimer pode ser feliz, às vezes realmente engraçado (com a história que você contou no começo, por exemplo), mas sem querer te fazer tristeza antes da hora, mas em algum tempo, sua avó não terá mais lembranças, nem terá mais conciência de quem ela mesma é. É muito muito triste, eu estou passando pela mesma coisa!
Pior ainda deve ser pro meu avô! =(

LAZ disse...

Drei, esse texto foi inspirado mesmo...não é que quando vc quer vc consegue escrever algo descente? Eu sempre acreditei!!!

Tô brincando (vc sabe), mas parabéns pq esse foi realmente foi diferenciado.

André B. disse...

Laz,

valeu, cara! Tamos juntos!

Remi,

sei disso. Em breve, é possível que não sobre nada na consciência da minha avó. A doença é cruel mesmo e leva a identidade da pessoa. Enquanto isso, vamos vivendo de lampejos esporádicos, e tentando fazê-la feliz em cada um deles.