segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Espelho meu

Quantos tem na sua casa?

Dois? Três? Talvez mais?

Na minha tem, entre grandes e pequenos, cinco.

Um pra fazer a barba no chuveiro, um portátil, um sobre a pia do banheiro e dois grandes de corpo inteiro.

Isto porque meu apartamento é pequeno, quarto e sala.

Conte os da sua casa? Quantos espelhos há?

Incrível como é desses objetos que nem percebemos mais. Tem tantos por aí.

No elevador, espelho. No carro, espelho-retrovisor. No banheiro, espelho. Na bolsa de mulher, espelho. Pra servir de decoração, espelho. Dá a impressão que o ambiente é maior, provoca sensação de amplitude.

Pra que tantos?

Vamos desconsiderar a fissura geral no próprio ego que marca os tempos atuais, ok? Sim, a cultura vigente de ode à beleza impossível faz com que todos nós sejamos, em maior ou menor grau, escravos do espelho.

Mas eu gostaria de ir mais fundo na questão. Narcisismos à parte.

Para isso, pego carona numa frase de um livro que acabei de ler, 'Diário de Fernando'.

Uma obra compilada por Frei Betto, da época em que ele esteve preso durante a ditadura militar brasileira. Ele e um grupo de frades dominicanos, que acolhiam e ajudavam jovens comunistas "subversivos", foram torturados pelos militares em 1969 e ficaram encarcerados até 1973.

O livro é a reprodução do diário de Frei Fernando durante os quatro anos de cárcere. Escrevia letras minúsculas em papéis de seda, os enrolava e os escondia dentro de uma caneta Bic opaca. Assim, conseguia driblar a fiscalização dos carcereiros e passava as páginas discretamente, quase toda semana, para os parentes e amigos que iam visitar.

Em meio às torturas, à vida deprimente, à solidão e a todas as privações da cadeia, Frei Fernando dedicou algumas páginas de seu diário para falar de um espelho.

No cotidiano, um objeto tão banal. Na prisão, a falta dele trouxe à tona o grande valor que tem para a vida humana.

As palavras de Frei Fernando não são exatamente estas, mas ele escreveu algo assim:

"Por causa do castigo, ficamos duas semanas na solitária. Sem direito a ouvir rádio, a tomar banho de sol, a receber as visitas semanais. Quando passaram os quinze dias, fui ter acesso a um espelho de novo. Incrível como nossa memória não guarda o nosso próprio rosto. O espelho é fundamental para mantermos a nossa auto-estima. E na cadeia isso já é um exercício bem difícil."

Fiquei encantado com este trecho. Eu nunca tinha pensado no objeto desta forma. Talvez, como nunca senti a falta dele, não havia percebido essa aura vital. Nunca tinha notado como o espelho está ligado à nossa essência.

É verdade, e é bem óbvio também. O espelho nos devolve a nossa identidade.

Da mesma forma, a convivência com outras pessoas nos devolve nossa sanidade.

Quando um homem fica um longo período isolado dos outros, tende a ficar louco. As outras pessoas servem de referência, de parâmetro. Quando nos encaixamos na sociedade, sabemos que somos sãos.

E um homem que permanece um longo tempo sem ver o próprio reflexo? Perde a identidade, se perde em si mesmo.

Não precisa ser estes espelhos industrializados que estão por aí. Os índios e os homens das cavernas conheciam as próprias feições nos reflexos da natureza. Na água, nas pedras, nos cristais.

Tinham a noção da própria massa corporal, do próprio tamanho em relação aos demais e ao mundo.

No palácio de Versalhes, uma das construções mais suntuosas da humanidade, o salão principal chamava-se "Sala dos Espelhos". Símbolo de todo o poderio e luxo de Luís XIV, monarca que dizia ser tão fundamental quanto o Sol para o povo francês.

Todos os visitantes do rei ficavam maravilhados. O lugar dava a sensação multi-olhos de que todos podiam ser vistos por todos os ângulos. Ficava a impressão de que a sala não tinha fim.

Usando um pensamento matemático simples, chegamos ao cerne da questão: Se os espelhos do palácio representam o poder, o luxo, o ego e o infinito, o que representa, então, uma minúscula cela de cadeia onde não se vê o próprio reflexo? No cubículo sujo e claustrofóbico estão a miséria, a penúria e a angústia.

- Quem sou eu? De onde vim, pra onde vou? - pergunta-se o homem desde que tomou consciência da própria existência no planeta. Até hoje não desvendamos este mistério. Sem um espelho, o enigma é ainda mais aflitivo.

O objeto é sinônimo de tantas idéias:

"Estou de bem com o espelho!"; ele é nossa auto-imagem.

"Não consigo me olhar no espelho depois dessa!"; ele é nossa consciência.

"Meu avô serve de espelho pra mim!", significa 'exemplo'.

"Esse espelho d'água é uma beleza!", significa "tranquilidade e equilíbrio".

Ele está em todas. E por estar em todas, está dentro de todos nós. É essencial para nossas vidas. O humano é o único animal sobre a Terra que não pode viver sem ele.
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Espelho, espelho meu... dê me respostas!

Você não serve apenas para devaneios fúteis, para retocar a maquiagem, para uma viagem rasa na própria aparência! A sociedade de hoje vive de retoques e operações plásticas pra te agradar!

Espelho, espelho meu...

Quando olhamos nossa própria face, mergulhamos no nosso interior.

Quando te encaramos, nos revelamos. Brotam nossas fraquezas, vêem à tona nossos sentimentos, traduzidos no sorriso-colgate ou no olhar magoado.

Quando te fitamos, surgem os questionamentos, as dúvidas. Descobrem-se os próprios princípios, os valores, a ética.

Políticos, mirem-se no espelho! Autoridades, olhem-se no espelho! Cidadãos, mirem-se no espelho! Será que tem vergonha nessas caras?

Quem olha no espelho vê a si mesmo, e enxerga também toda a humanidade.

4 comentários:

Rach disse...

dé.
eu concordo em partes com a importância do espelho. mais por conta da sociedade que exige tanto da imagem do que qualquer outra coisa.
mas acho também que, nos dias de hoje, as pessoas têm olhado no espelho sempre pensando no que os outros vão pensar. em qual será o julgamento do outro. Me parece que as pessoas têm uma relação rasa com o espelho.
Será? Posso estar errada...ou o xis da questão é justamente essa contradição.

hbo disse...

Em primeiro lugar: respondendo à sua pergunta, nós temos 5 espelhos espalhados pela casa, mas um de corpo inteiro , esse traduz exatamente o que eu sou naquele momento que estou me olhando.É ele que me diz bom dia ao meu primeiro passo cambaleante que dou.É ele que me diz se estou meio caída ou sonolenta. Arrumada ou descabelada. Gorda ou elegante. É ele que reflete meu estado de espiríto. Realmente, é ele que me faz saber que estou viva. Lindo seu texto. bj

André B. disse...

Rá,

concordo com essa ambivalência de valor que tem o espelho.

Por um lado, serve à futilidade da sociedade, que vive de aparências e se preocupa apenas com os outros

Por outro, acho que o objeto tem, sim, um valor inestimável para as questões mais profundas e subjetivas do ser humano. Auto-estima, consciência, Auto-imagem, respeito ao próximo (devido à semelhança de fisionomias entre os humanos).

Enfim, questão filosófica mesmo! Beijão

André B. disse...

HBO, minha querida tia,

achei o que você escreveu muito, muito melhor que meu texto!!!

Em poucas palavras, mas disse tudo o que eu disse com muitas!!!

Beijãozãozão!!!

ps: essa parte pra mim é a melhor

"É ele que me diz bom dia ao meu primeiro passo cambaleante que dou.

É ele que me diz se estou meio caída ou sonolenta.

Arrumada ou descabelada. Gorda ou elegante.

É ele que reflete meu estado de espiríto.

Realmente, é ele que me faz saber que estou viva."