terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Mendigo e dignidade

O post abaixo conta duas histórias bem-humoradas sobre pessoas que têm seu ganha-pão nas ruas.

Este aqui, contudo, não visa a provocar risadas. Pelo contrário. Escrevo para refletir sobre algo que aconteceu há poucos dias.

Na minha rua tem um mendigo. De aparência bem tradicional, fácil de imaginar. Barba grisalha, cabelos ficando brancos, dentes ruins. Silencioso, sentado na calçada. Aspecto surrado, parece ter uns 50 anos, embora seja comum que essas pessoas aparentem ter mais idade do que têm realmente.

Toda vez, eu e MClara passávamos por ele também em silêncio. Ele não nos chamava, não nos incomodava. Nós também não dirigíamos a palavra.

Mas isso fazia mal a MClara. Ela sempre me dizia "Vamos falar com ele". Eu ficava com medo de invadir a 'bolha' dele. Na verdade, tinha medo de me dirigir a alguém cuja reação seria imprevisível. Tinha medo de que ele estivesse ficando louco, como tantos outros, e que eu pudesse despertar nele um rompante agressivo ou desmedido.

(No meu íntimo, no entanto, eu me angustiava e me punia: como podemos chegar ao ponto de temer falar com outro ser humano?)

Um dia, cheguei em casa sozinho e o vi na calçada. Ele vendia doces, coisa que fazia com frequência, aliás. Talvez para não ficar na simples mendicância, talvez para tentar, naquele gesto, segurar o fio de dignidade que restava.

Abri meu porta-malas e tirei algumas roupas velhas. Me dirigi a ele.

- Oba. Tudo bem? Aqui tem algumas roupas pro senhor.
(sorriso) - Pra mim? Mas tem certeza, tem certeza que não vai fazer falta?
- Não, não. É meu presente pro senhor. O senhor aceita?
- Ah, claro! Mas não vai fazer falta mesmo, né? Ah, muito obrigado. Obrigado mesmo.
- Qual é seu nome?
- Meu nome é José... José Wellington.

Não sei quanto tempo fazia que alguém tinha perguntado o nome dele pela última vez. Talvez seja pretensão minha achar que pouca gente tinha feito o gesto que, finalmente, tive coragem de fazer. Mas, para mim, não interessava.
A pergunta que me arrebatava naquele momento, enquanto me distanciava dele, era por que eu tinha demorado tanto para falar com aquele ser-humano?
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Poucos dias depois, eu e MClara descemos ao térreo e fomos entrando no carro. José Wellington estava na calçada, com uma caixa de chocolate na mão. Chocolate com recheio de morango.

Nós o saudamos. Ele nos disse olá de volta, e mostrou a caixa. Eu disse que não queria comprar. Ele disse, "Não, pode levar. É meu presente pra você."

Levamos a caixa de chocolate com morango. Eu que, pouco tempo atrás, nem lhe dava o direito à palavra. Agora tinha ganho das mãos dele um presente. Presente das mãos de um ser-humano digno de existir, conversar e presentear outras pessoas.

Obrigado, José Wellington.
O presente maior é doce e prazeroso como o chocolate.
O presente maior é tirar esse ranço amargo e repulsivo da boca.
Amargura de quem, por vezes, não sabe reconhecer um semelhante.

8 comentários:

Anônimo disse...

Boa, Drei! Só emoções. Porra, não sei se é o final de ano, mas ando completamente emotivo nesse últimos dias. Tô lendo seu blog no trabalho e quase chorei com essa história. E também foi bom demais ver seu trabalho ilustrando o post. Quantas emoções. Lembro nitidamente de quando você o fez. Já faz mais de dez anos... surreal. Você não pode largar essa veia artística. Só pra te estimular, um dos meus quadros favoritos e que mais me fez pensar sobre as possibilidades da arte - sobre o processo incrível que é misturar as tintas e produzir representações - é aquele seu quadro inspirado no The Night café do Van Gogh, só que com o bar fechando, as cadeiras em cima das mesas...

Anônimo disse...

Querido Dezito,
Ia dizer o mesmo que Cristiano. Não sei se é a época, ou a saudades que aperta do Touro, mas fiquei muito emocionada com essa história, e, ao contrário do Cristiano , eu chorei. Chorei para valer. Chorei de emoção por ver quanto é grande sua sensibilidade.Que ser iluminado vc é.
Na verdade, eu já conhecia esta história,mas a facilidade que vc tem de colocar em palavras uma simples história,mas tão grandiosa, é surpreendente.Sabe, Dé, eu trabalho tanto com essa população que chega a ser quase mendiga e ainda com um plus, teem um filho deficiente, que isso entrou na rotina de minha vida, mas...eu faço o outro lado, dou um pouco de dignidade a essa criança, e a essas familias, dando o mínimo que seja de bem estar e melhorando a qualidade de vida desta criança. É absolutamente lindo o seu gesto. Eu te amo.
Obs. o quadro eu lembro também e ainda acho que vc devia seguir, nem que seja por hobby, esta veia artística( tal qual disse meu querido Cristiano). BJ

Anônimo disse...

Até eu chorei! E olha que eu presenciei a cena!! Não precisa ir muito longe para perceber a exclusão, o descaso, a falta de compaixão. Costumo perceber os trocadores nos ônibus. É raro encontrar alguém que diga "boa tarde", "boa noite", "obrigada". As pessoas simplesmente entregam o dinheiro e passam reto. Como assim?? é um ser humano que está na sua frente! Esse é só um exemplo. Tem ainda aqueles que distribuem panfletos na rua, o entregador de pizza e muitos outros. Enfim, falta mais do que educação. Acho que falta amor mesmo.

bjs

Anônimo disse...

Que fofura, Meu Deus.

Unknown disse...

Dé, outro dia uma cena com um mendigo tb me marcou. O cara, visivelmente bêbado, tentava entrar num pé-sujo em Ipanema às 10 da manhã. O funcionário do boteco impediu a entrada do mendigo. Da rua, ele gritou:"eu não ia pedir nada não. Eu tenho dinheiro. Eu ia comprar. Olha aqui", e abriu a mão para mostrar uns trocados. Eu pensei: uma vez q vc vira mendigo, não tem mais volta. É viver marginal para sempre. Triste. Bateu aquela culpa.

Anônimo disse...

Oi, 1ª vez aqui no bloq, achei seu link no Dois Cliques e vim espiar... Assim como todo mundo que comentou esse post meu olho encheu d'água. Parabéns pelos textos. Volto mais vezes.

André B. disse...

Muito obrigado,

espero que volte mesmo!

E curta!

Rach disse...

nada como ter o dom da palavra. pra poucos, pra poucos.

posso dar uma dica pra vc e pra claire? leiam o livro "a vida que ninguém vê", da eliane brum. o título já diz tudo. vocês vão gostar.